[MODELO] Réplica: Aplicabilidade do CDC e da Lei dos planos de saúde a contratos anteriores à sua vigência e inexistência de ato jurídico perfeito
EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA 1000ª VARA CÍVEL DA COMARCA DA CAPITAL.
Proc. nº 2003.001.0000000037-7
SILENE DIAS SOUZA, já qualificada nos autos da AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FORNECIMENTO DE SERVIÇO COM PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA que move em face de UNIMED-RIO COOPERATIVA DE TRABALHO MÉDICO DO RIO DE JANEIRO LTDA. vem, pela advogado teresina-PI infra-assinada apresentar sua
RÉPLICA
aduzindo, para tanto, o que se segue:
No que se pese o esforço da Ré para tentar rebater os argumentos apresentados na exordial, as alegações declinadas na contestação de fls. 62/70 em nada abalam a sólida fundamentação jurídica exposta na inicial, incumbindo à Autora, tão somente, esclarecer de forma objetiva que:
Alega a Ré única e exclusivamente que o Código de Defesa do Consumidor e a Lei 000656/0008 não se aplicam ao contrato em questão, pelo simples fato do mesmo ter sido celebrado antes da entrada em vigor destes dois diplomas.
DA APLICABILIDADE DO CDC E DA LEI 000656/0008 PELO FATO DE CONTEREM NORMAS DE ORDEM PÚBLICA
O CDC e a Lei dos planos de saúde, de forma inegável, contêm dispositivos legais de ordem pública.
Todavia, o que vem a ser uma norma de ordem pública?
Caio Mário da Silva Pereira sustenta que “condizem com a ordem pública as normas que instituem a organização da família; as que estabelecem a ordem de vocação hereditária e a sucessão testamentária; as que pautam a organização política e administrativa do Estado, bem como as bases mínimas da organização econômicas; os preceitos fundamentais do Direito do Trabalho; enfim, as regras que o legislador erige em cânones basilares da estrutura SOCIAL, política e econômica da Nação.”(Instituições de Direito Civil, vol.3, 10a edição. Rio de Janeiro: Forense, 2012; página 11)
Desse modo, estabelecendo cânones basilares da estrutura social de nosso país, sendo assim de ordem pública, as referidas leis têm vigência sobre os contratos anteriores ao dia da publicação das mesmas, desde que seus efeitos, não obstante o fato de que são gerados por um negócio jurídico antigo, realizem-se no futuro, fato este que caracteriza os contratos por trato sucessivo.
É essa a posição da jurisprudência que tem estado em melhor sintonia com a gravidade da questão, bem representada pelo acórdão abaixo:
“AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL. CDC. COMPETÊNCIA DE FORO. A disposição do artigo 101, inciso I, da Lei 8.078/0000 (CDC) é de ordem pública e incide sobre os contratos celebrados anteriores à sua vigência. Decisão mantida. Agravo improvido”.(Agravo de instrumento no 10000008.002.03383; órgão julgador: Décima Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RJ; Relator : Desembargador Jayme S. Ferreira; julgado em 18/08/10000008)
DA INEXISTÊNCIA DE ATO JURÍDICO PERFEITO
Além disso, o argumento de que se aplica ao caso o princípio constitucional de que a lei deve respeitar o ato jurídico perfeito não deve prosperar, visto que, segundo o art. 6o , parágrafo 1o da Lei de Introdução ao Código Civil “reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”.
Ato consumado é aquele definitivamente exercido. Não é o caso, portanto, do contrato em questão, visto que os efeitos deste ainda ocorrem, sendo um ato em exercício e não já exercido, por ser o mesmo contrato por trato sucessivo.
DA ADAPTAÇÃO DAS NORMAS CONTRATUAIS SEGUNDO AS REGRAS DA LEI 000656/0008
Na remota possibilidade de V. Exa. não considerar os argumentos acima expostos, solicitamos que sejam levadas em conta as alegações que se seguem.
É cediço a todos que duas pessoas, quando constituem um contrato, tornam-se titulares de direitos e obrigações.
Portanto, não existe, numa avença dessas, apenas a obrigação principal (que pode ser prestação de dar, fazer, ou não fazer), mas também uma série de obrigações secundárias, que se relacionam diretamente com o tempo, lugar e modo de ser da prestação. Algumas obrigações secundárias, quando não cumpridas, fazem com que o contrato, mesmo quando ocorra o cumprimento de sua prestação principal, perca a sua utilidade econômico-social, tornando-a (prestação principal), assim, insatisfatória ao credor.
É o que acontece com o contrato em questão. A parte Ré, quando da entrada em vigor da referida lei, faltou com o dever de lealdade para com a Autora. Falta esta que se consubstanciou no fato de que aquela não deu ciência a esta que havia entrado em vigor uma nova lei que disciplinava, de forma mais benéfica ao segurado, os planos de saúde. Omitiu-se, faltou com o dever de informação, não a comunicando da mudança da regulamentação legal, que em seu artigo 35, faculta aos segurados de contratos anteriores à sua vigência a possibilidade de optar pela adaptação ao sistema previsto na mesma. Essa opção, porém, não foi proporcionada à Autora, visto que, como todos sabemos, o fornecedor, por um dever moral e jurídico, deve dar toda informação sobre a atividade que exerce e conhece e que, de alguma forma, seja relevante aos seus clientes, que, por sua vez, não são obrigados a ser juristas ou especialistas na área para poder exercer seus direitos de forma útil e satisfatória.
Por isso, não deve a Demandante, que, além de ter idade bastante avançada, sofre de mal de Alzheimer e outras doenças sérias (sendo, assim, hipossuficiente), suportar as conseqüências de um fato que a ela não pode ser imputado.
DA PRESTAÇÃO DEVIDA
Ultrapassada, então, a questão da aplicabilidade ou não do CDC e da Lei dos Planos de saúde no caso em questão, deve ser considerada nula a cláusula que estabelece limitação ao número de internações hospitalares de urgência à Autora, por ser incompatível com os já citados, na exordial, arts. 12, II, alínea a, da Lei 000656/0008 (que veda a limitação de prazo, valor máximo e quantidade de internações hospitalares) e 51, IV, do CDC (que considera nulas de pleno direito as cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade), bem como com os incisos I e II do parágrafo 1o do mesmo artigo.
Além disso, cumpre destacar a decisão do Sr. Juiz do Plantão noturno que afirmou: “afigura-se vedada a limitação de prazo para internações dessa natureza, nos termos da norma acima referida, eis que tal implica em abusva limitação de responsabilidade, que não se confunde com a lícita limitação de riscos inerentes ao contrato de seguro”.( folha 13)
Se não cumprir o encargo a que está obrigada, a Ré estará extrapolando os limites da lei e dos princípios constitucionais basilares, como o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. Princípios estes que não devem sofrer limitações frente a outros de caráter meramente patrimonial.
DA VISÍVEL E INADIMISSÍVEL AFRONTA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Incontroverso é que, quando da época da celebração do contrato em questão, a Constituição da República já estava em pleno vigor.
Assim, visível é o fato de que o contrato em questão viola o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, ambos previstos na CF. Portanto, constatando-se isso, deve ser rechaçado no que se contradiz à mesma, sob pena de ser a Carta Magna a rechaçada.
Neste sentido, salutar é a leitura do incisivo e brilhante acórdão transcrito abaixo:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERNAÇÃO HOSPITALAR SUJEITA À LIMITAÇÃO DE TEMPO. ANTECIPAÇÃO DE TUTELA, EM PARTE, PARA QUE A PERMANÊNCIA DA PACIENTE NO NOSOCÔMIO NÃO SOFRA SOLUÇÃO DE CONTINUIDADE. IMPROVIMENTO DO RECURSO. As alegações da Autora, ora Agravada, impregnam-se de verossimilhança, estando presente o periculum in mora, quando buscam a ineficácia de cláusula contratual que admite que a internação hospitalar de um paciente fique restrita a um determinado lapso de tempo. In casu, o Agravante reconhece que se trata de paciente com sessenta e seis anos de idade, "portadora de desequilíbrio mental, especificamente demência na doença de Alzheimer isto é, doença psiquiátrica de caráter degenerativo crônico, progressivo, irreversível, que apresenta crises eventuais". Obrigar essa doente a abandonar a assistência médica e o leito do hospital, porque transcorrido um determinado número de dias de Internação, tão somente porque uma cláusula contratual assim prevê, seria rasgar a Constituição Federal que tão bem e claramente procura cercar de garantias os direitos mais sagrados do ser humano, no que tange à preservação da vida. Ergo, até que o seu médico assistente, diante de quadro clínico que tal autorize, dispense-a da aludida internação hospitalar, nela deverá permanecer, argumento que se alicerça na presença dos requisitos do artigo 273, do Código de Processo Civil, bem como no que prevê o Código de Defesa do Consumidor, e ainda, a Portaria nº 4, de 13 de março de 10000008, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça. Improvimento do recurso.” (Agravo de Instrumento no 2012.002.03107; órgão julgador: Sexta câmara cível do TJ/RJ; Relator Des. Albano Matos Correa; julgado em 02/10/2012)
Além disso, cumpre citar, ainda, as palavras do Sr. Juiz de Direito do Plantão judiciário, na folha 14 dos autos : “Ademais, o direito à vida, de assento constitucional, sobreleva a qualquer outro, pelo Princípio da Ponderação de Interesses”.
DA AFRONTA AOS BONS COSTUMES
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, na mesma obra já mencionada (página 11), diz que : “os contratantes sujeitam, pois, sua vontade ao ditado dos princípios da ordem pública e dos bons costumes.” Depois, o mesmo autor emenda :
“Bons costumes são aqueles que se cultivam como condições de moralidade social, matéria sujeita a variações de época a época, de país a país, e até dentro de um mesmo país e mesma época. Atentam contra bonos mores aqueles atos que ofendem a opinião corrente no que se refere à moral sexual, ao respeito à pessoa humana, à liberdade de culto, à liberdade de contrair matrimônio.
Dentro desses campos, cessa a liberdade de contratar. Cessa ou reduz-se. Se a ordem jurídica interdiz o procedimento contra certos princípios, que se vão articular na própria organização da sociedade ou na harmonia das condutas, a sua contravenção penetra as raias do ilícito, e o ato negocial é ferido de eficácia.”
Assim, por ser o negócio jurídico em questão desrespeitoso à pessoa humana, deve ser declarada ineficaz a cláusula que estabelece limitação de dias de internação em hospital.
DO PRINCÍPIO PACTA SUNT SERVANDA E O EQUILÍBRIO ECONÔMICO ENTRE OS CONTRATANTES
Relembramos o conhecido preceito: “O contrato faz lei entre as partes”, mencionado pela Ré em sua contestação. Caso uma lei seja contrária à Constituição da República Federativa do Brasil, poder-se-á provocar o Poder Judiciário, para que este declare a desconformidade, liberando assim, conforme o caso, as partes, ou a sociedade, do cumprimento da lei contrária à estrutura jurídico-normativa do Estado. Sendo o contrato “lei entre as partes”, pode este ser revisado, e ver declaradas nulas aquelas cláusulas que estejam eivadas de vício, mesmo sendo livremente contratadas pelas partes. Pode o Judiciário interferir nas relações as quais firam as normas de Constituição do Estado e demais normas pertinentes, sendo ele o guardião máximo do Ordenamento Jurídico, não podendo nada ser excluído de sua apreciação, o que violaria frontalmente o disposto no art. 5o ,XXXV da Carta Magna.
Além disso, desequilíbrio contratual haveria se, tendo pago as mensalidades do plano de saúde em dia, dinheiro este que a Ré nunca se opôs a receber, a Autora tivesse o acesso a procedimentos médicos mínimos necessários, tomando-se em conta a grave situação clínica em que se encontra, negado pela mesma.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, requer à V. Exa. se digne confirmar a tutela antecipada concedida, e ao final, a procedência do pedido, protestando provar o alegado por todos os meios de prova admitidos em direito.
Termos em que,
E. deferimento.
Rio de Janeiro, ___ de abril de 2003.
Cristiano Caldas Pinto
Estagiário
Matricula 22488/02