[MODELO] Recurso em sentido estrito – Extinção de punibilidade por anistia inconstitucional.
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO – 3º TURMA
RECURSO CRIMINAL Nº
RECORRENTE: JUSTIÇA PÚBLICA
RECORRIDOS:
RELATOR : DES. FEDERAL HELENA CISNE
Egrégia Turma
. Cuida-se de recurso em sentido estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL de decisão que declarou extinta a punibilidade de MARIO CESAR CARVALHO LYRIO, com base no art. 107, II do Código Penal, com fundamento na anistia concedida pelo parágrafo único do art. 11 da Lei 9639, publicada no Diário Oficial de 26.05.1998.
. A decisão surpreendentemente busca fundamento no decreto de anistia consubstanciado no par. único do art. 11 da Lei 9639/98, cuja inconstitucionalidade formal foi há muito declarada pelo Colendo Supremo Tribunal Federal. Além disso, entendeu o magistrado que, ainda que inexistente ou ineficaz o seu parágrafo único, em homenagem ao princípio da ISONOMIA, deve ser extendida a todos quantos se encontrem envolvidos em fatos semelhantes àqueles ali cogitados, os efeitos do disposto no caput do dispositivo em questão.
O Ministério Público Federal interpôs recurso em sentido estrito, a sustentar a inexistência da norma em apreço, tendo em vista que o parágrafo único do art. 11 da Lei nº 9639/98, embora tenha sido publicado no Diário Oficial, não foi apreciado pelo Congresso Nacional.
É o relatório.
. A sentença declarou extinta a punibilidade, a invocar o que estaria disposto no parágrafo único do art. 11 da Lei nº 9.639, na versão publicada na Seção I do Diário Oficial de 26.05.98, in verbis:
“Art. 11 – São anistiados os agentes políticos que tenham sido responsabilizados, sem que fosse atribuição legal sua, pela prática dos crimes previstos na alínea ‘d’ do art. 95 da Lei nº 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960.
Parágrafo único: São igualmente anistiados os demais responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea ‘d’ do art. 95 da Lei nº 8.212, de 1991, e no art. 86 da Lei nº 3807, de 1960.”
. Acontece que a mencionada lei veio a ser republicada, já no Diário Oficial do dia seguinte, 27 de maio de 1998 “por ter saído com incorreção no DOU de 26.05.98, Seção I”.
. Para o magistrado, desde a primeira publicação, a lei já estava em vigor, e, mesmo que se considerasse a nova publicação como “correção”, incidiria a regra do art. 1º, §8º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo a qual “as correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova”.
. O segundo argumento é o de que se impõe a extensão dos efeitos do caput a todos os indivíduos processados ou condenados por aqueles delitos, ainda que as pessoas nele envolvidas não ostentem a qualidade de agentes políticos, porque a anistia tem por característica a generalidade, ou seja, se refere a fatos e não a pessoas. O pensamento em sentido contrário, a seu aviso, importaria em violação ao princípio constitucional da isonomia ou igualdade, previsto no caput do art. 5º da Constituição da República.
. O raciocínio e a decisão não poderiam ser mais equivocados, a começar pela singela circunstância de que partem da falsa premissa de que, no dia 27.05.98, quando se fez publicar o texto íntegro da Lei nº 9639, já existia, vigente, uma outra lei, de conteúdo semelhante, publicada em dia anterior.
. Lei, como parece curial, não é outra coisa mas o resultado de uma sequência ordenada de atos e formalidades, constitucionalmente estabelecida, em cujo contexto a publicação se insere como mera formalidade complementar. Ocupou-se do tema o Professor Marcelo Caetano[1], cujo magistério é esclarecedor :
“…considera-se processo legislativo a sucessão ordenada de trâmites a observar na elaboração dos atos normativos pelos órgãos colegiados constitucionalmente competentes para legislar, e das formalidades complementares.
…
Estamos perante um procedimento e, portanto, há trâmites estabelecidos na lei e nos regimentos que se sucedem segundo certa ordem, não podendo ser praticado o consequente sem estar observado o antecedente.
A finalidade desta sucessão progressiva de trâmites é a produção ou elaboração de normas traduzidas num ato de autoria do órgão constitucionalmente competente para o praticar.
Na elaboração deste ato tem de se tomar em conta as formalidades complementares da atividade dos órgãos colegiados (sanção, promulgação, publicação).”
. Cumpre reiterar que o primeiro texto que se publicou constitui-se, em última análise, pelo menos naquilo que concerne ao indigitado parágrafo único, num nada jurídico. É inexistente, na medida em que não oriundo do processo que o art. 59 da Constituição da República estabelece.
O parágrafo único inserido no art. 11, de fato, nunca fez parte do projeto final votado e aprovado pelo Congresso. Seu acréscimo ao texto, no momento da publicação, ainda não se sabe ao certo, terá decorrido, na melhor das hipóteses, de equívoco inescusável ou, na pior, de genuína má-fé.
. Disso constitui prova o incluso ofício dirigido pelo Secretário Geral da Mesa do Senado ao Procurador da República José Bonifácio Borges de Andrada, hoje ocupando o cargo de Consultor Jurídico do Ministério da Previdência e Assistência Social, cuja clareza está a justificar a trascrição que dele se faz adiante:
“Com referência à Lei nº 9639, de 25 de maio de 1998, informo à Vossa Senhoria que o Plenário do Congresso Nacional, na sessão de 12.05.98, aprovou o Projeto de Lei de Conversão nº8, de 1998, advindo da Medida Provisória nº 1608-18, dele não constando o parágrafo único do art. 11.
Cabe esclarecer que, na sessão do dia 05.05.98, o Relator da matéria apresentou uma versão do mencionado projeto de lei de conversão com o dispositivo em questão. Entretanto, na sessão em que houve a sua aprovação, o Relator apresentou novo texto do projeto de lei de conversão sem o parágrafo único do art. 11, versão esta que veio a ser aprovada pelo Plenário.
No momento da confecção dos autógrafos a serem encaminhados à sanção do Senhor Presidente da República, por equívoco, foi tomada como base a primeira versão constante do processo, ensejando a publicação da lei no Diário Oficial da União em 26.05.98, contendo o mencionado dispositivo. Constatado o equívoco, de imediato foi encaminhada mensagem ao Senhor Presidente da República, comunicando o fato e solicitando a republicação da lei, o que veio a ocorrer no dia seguinte, ou seja, em 27.05.98.”
. Destas informações, repita-se ainda uma vez, uma conclusão resulta: o primeiro texto publicado é inexistente do ponto de vista jurídico, por isso que não originado de processo legislativo regular (CF, art. 59).
. O Presidente da República sanciona texto que o Congresso Nacional decreta, observado o procedimento detalhadamente previsto na Constiuição. Se o Congresso a seu respeito não deliberou, o texto sancionado obviamente não é lei, por lhe faltar o atributo básico da aprovação pelo Poder Legislativo.
. Ocupou-se do tema o Promotor de Justiça ANDREAS EISELE, em artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 35, do qual extraio os seguintes excertos:
“Para tanto, fundamental é se considerar a natureza do erro que gerou o texto original, e os motivos que o determinaram.
Conforme a Mensagem da Presidência do Congresso Nacional nº 37, de 26 de maio de 1998, endereçada à Presidência da República, foi constatada a ‘inexatidão material’, na publicação do DOU de 26.05.98.
O texto originalmente remetido ao Palácio do Planalto, para sanção e posterior promulgação, não corresponde ao aprovado pelo Poder Legislativo, oriundo do Projeto de Lei de Conversão nº 8, de 1998, do Congresso Nacional, pois, após a deliberação, o texto final a ser submetido à sanção Presidencial não continha o parágrafo único do art. 11.
Assim, o dispositivo específico, publicado na primeira edição da lei, não se submeteu ao devido processo legislativo, pois ainda que equivocadamente sancionado pelo Executivo, não foi aprovado pelo Congresso Nacional.
Sendo lei, em seu aspecto formal, um ato complexo, conforme salienta Manoel Gonçalves, este não é válido, ‘se não são válidas todos os elementos que devem concorrer à sua formação’
Sob este prisma, o dispositivo, fruto de erro de publicação, é nulo, não gerando efeitos, de modo que, tal nulidade pode ser reconhecida de ofício pelo XXXXXXXXXXXX, de forma incidental, na apreciação da possibilidade de aplicação da lei em concreto.
Miguel Reale arrola a legitimidade do procedimento como requisito essencial à elaboração da lei, ao lado da legitimidade subjetiva do órgão de onde emana a regra. Assim, afirma que: ’se o Congresso ou a Assembléia não bastam para fazer uma lei, não é menos certo que sem eles não há lei propriamente dita’.
No ordenamento jurídico nacional, o processo legislativo é, inclusive, matéria constitucionalmente regulada, na Seção VIII do Título IV, da CF de 1998.
Assim, a nulidade deriva de inobservância a norma constitucional e, logo, a lei elaborada sem o cumprimento dos dispositivos reguladores do processo legislativo é inconstitucional”[2].
. Não é outro o parecer de Mario Luiz Bonsaglia, eminente Procurador da República com atuação do Distrito Federal. É ler:
"Não se ignora que o parágrafo 8º do artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil disponha que "As correções de texto de lei já em vigor consideram-se lei nova ". Todavia, como ressalta Washington de Barros Monteiro, em comentários a esse dispositivo, ‘demonstrado o erro com que foi publicada a lei, não deve ser aplicado o pensamento resultante do texto defeituoso e sim o que de fato teria disposto o legislador. E a competência para corrigir o erro é do próprio XXXXXXXXXXXX, ainda que faça sentido o texto errado’.
Com efeito, imaginar que pudesse valer um texto não votado pelo legislador seria afrontoso à Constituição e ao próprio regime democrático".
. A vingar a tese adotada pelo magistrado, os atributos de validade, existência e eficácia dos atos legislativos ter-se-iam reduzidos ao detalhe de constar o dispositivo de publicação no Diário Oficial. Admitiria o sistema assim concebido o disparate de considerar lei, com todos os efeitos a ela inerentes, o simples e eventual capricho do encarregado da gráfica, a favorecer, o que é pior, tanto o empregador negligente na obrigação de repassar valores descontados dos salários dos seus empregados quanto o homicida, o sequestrador, o traficante. Ubi eadem ratio, ibi eadem jus.
. Ainda que o Secretário-Geral da Mesa do Senado atribua a falha a simples equívoco, o texto que ora se discute foi parar no Diário Oficial não se sabe por obra de quem. Não constava da medida provisória ou do projeto de sua conversão em lei. Não foi objeto de debate ou votação no Congresso. Mas, ainda assim, se pretende atribuir-lhe a chancela de ato legislativo válido e capaz de gerar efeitos. O caso seria cômico, não se constituísse em trágico retrato de como, no Brasil de nossos dias, interesses escusos alcançam seus objetivos, não importa quão tortuosos se apresentem os caminhos escolhidos.
. O ilustre XXXXXXXXXXXX a quo fundamenta a decisão no artigo 1º, § 8º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual as correções a texto de lei já em vigor hão de considerar-se lei nova. Mas a tese, como se vem de demonstrar, parte de premissa irreal, pois o caso não é de correção a texto de lei, já que lei não havia. Houve, isto sim, a publicação de um texto não emanado do Poder Legislativo, incapaz de gerar qualquer efeito no mundo jurídico.
. Considerações semelhantes levaram o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL a decidir no mesmo sentido, nos habeas corpus nº 77728-SP e 77738-SC, conforme noticiou o Informativo nº 130, divulgado em 02.11.98. É ler:
“O Tribunal, por unanimidade, indeferiu habeas corpus impetrado por paciente condenado pelo crime do art. 95, d da Lei 8212/91 (“deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à seguridade social e arrecadada dos segurados ou do público”), em que se pleiteava a aplicação do parágrafo único do art. 11 da Lei 9639, publicada em 26.05.98, que concedia anistia a todos os responsáveis pela prática do aludido crime, sendo que a referida Lei foi republicada no dia seguinte com exclusão do citado parágrafo (v. Informativo 127). Considerou-se que o parágrafo único do art. 11, incluído na publicação primitiva, não fora aprovado pelo Congresso Nacional quando da votação do projeto de lei, existindo apenas em decorrência da inexatidão material nos autógrafos encaminhados à sanção do Presidente da República, ficando evidente sua invalidade por inobservância do processo legislativo. Consequentemente, o Tribunal declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 11 da Lei 9.639, em sua publicação de 26 de maio de 1998, explicitando-se que a declaração tem efeitos ex tunc. Precedentes citados: HC 77.728-SP, rel. Min. Marco Aurélio e HC 77.738-SC, rel. Min. Néri da Silveira, 8.11.98”
. Estabelecido que o espúrio parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 9.639/98 não constitui fundamento para um veredicto, convém, ainda assim, examinar o texto da lei que, afinal, veio a ser publicada no dia 27.05.98, para, desde logo, afastar argumentação fundada no princípio da generalidade que deve ser informar os decretos de anistia, ou em suposta violação ao princípio isonômico.
. A discussão a esse respeito não tem razão de ser, pelo simples fato de que, a despeito do uso equivocado que faz da expressão, o artigo11 da Lei nº 9.639/98, a rigor, não trata de anistia. Consta do dispositivo:
“São anistiados os agentes políticos que tenham sido responsabilizados, sem que fosse atribuição legal sua, pela prática dos crimes previstos na alínea d, do artigo 95 da Lei nº 8.212, de 1991 e no artigo 86 da Lei nº 3.807, de 26.8.1960.”
. A assim chamada “anistia” é concedida ao agente político — na verdade o prefeito municipal, para utilizar a expressão do relatório elaborado pelo deputado José Luiz Clerot, relator do projeto — na hipótese de não ter ele atribuição legal para proceder ao recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados.
. Ora, se atribuição legal não existe o agente não pode ser sujeito ativo delito. O caso não é, destarte, de anistia mas de atipicidade da conduta, porque só pode responder pela omissão quem detenha o atributo da ação.
. E mesmo quando se admita que de anistia se trate, é perfeitamente possível e consetânea com o ordenamento em vigor sua concessão de forma restrita, tendo em vista as peculiaridades e diferenças ostentadas pela duas situações em cotejo: a dos agentes políticos e a dos agentes provados. Oportunas, mais uma vez, as considerações do eminente Procurador da República MÁRIO LUIZ BONSAGLIA[3]:
“Ora, a anistia promovida em benefício apenas dos agentes políticos- essencialmente os prefeitos- não fere o princípio da igualdade porquanto é razoável distinguir a situção destes da dos agentes provados, os quais fazem recair o proveito de sua ação delitiva ( mais exatamente da omissão no recolhimento das contribuições previdenciárias destinadas à Previdência Pública) em benefício de entidades privadas, na maioria dos casos movidas pelo propósito de lucro.
Nos caso dos entes públicos, o proveito econômico auferido com o não recolhimento das contribuições reverte em benefício da comunidade, ainda que irregularmente. O malefício social, nesses casos, é substancialmente menor.”
. Esse entendimento se harmoniza com a orientação ditada pela jurisprudência ditada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. É conferir:
HABEAS CORPUS IMPETRADO CONTRA ATO DO MM. JUÍZO A QUO QUE INDEFERIU PEDIDO DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE FORMULADO COM SUPEDÂNEO NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 11 DA LEI N.9639/98.
1 – O artigo 11 da Lei n.9639/98 resultou da aprovação pelo Congresso Nacional do projeto de lei de conversão n.08/98, originário da MP n.1608-18.
O relator desta incluiu, no projeto de conversão, o dispositivo controvertido. A extensão a outros sujeitos ativos foi por ele suprimida, conforme notas taquigráficas da sessão do Congresso Nacional de 12/05/98.
Todavia por equívoco, o texto final, sancionado pelo Presidente da República, trazia o que foi excluído. Dessa forma, a lei foi publicada, em 26/05/98, e republicada no dia seguinte com a subtração do preceito espúrio.
2 – A mera publicação da peça normativa, ao arrepio da apreciação dos representantes do povo, atinge de forma veemente o estado democrático de direito e constitui um nada jurídico, despido, assim, de eficácia ou mesmo de existência.
A mencionada renúncia ao jus puniendi matéria de atribuição do Congresso Nacional (artigo 88, inciso VIII, da CF), com a sanção presidencial. Não a hipótese do par. 8 do artigo 1 da LICC, que pressupõe incorreção ou erro material.
3 – Estabelecida a possibilidade jurídica do favor restrito, a opção feita pelo legislador de abranger só uma categoria de infratores não fere o princípio da isonomia.
A lei que a concede, por ter natureza excepcional, deve ser interpretada de forma contida.
Ademais a Lei n. 9639/98 tratou desigualmente pessoas desiguais ao acrescentar um par.5 ao artigo 95 da Lei n. 8212/91, o qual dispõe serem os agentes políticos sujeitos ativos da omissão no recolhimento das contribuições sociais, se tal recolhimento foi atribuição legal sua.
Quis o legislador corrigir uma situação de responsabilidade sem culpa lato sensu.
8 – Ordem denegada.
(TRF – 3ª Região – 5ª Turma – HC 03062195 ANO: 1998 SP)
Do exposto, o parecer é no sentido do provimento do recurso.
Rio de Janeiro,