[MODELO] Homicídio culposo de trânsito: análise do enquadramento e diferenciação das penas
Universidade Estácio de Sá
Aluna:
Disciplina: Direito Penal V
Aula 5 – Caso 6
Paulo, dirigindo veículo de propriedade de seu genitor, imprimiu excesso de velocidade a acabou por invadir calçada por onde passava pedestre, o qual, em face do atropelamento, veio a falecer no hospital, para onde foi levado por um transeunte, pois Paulo fugiu do local. Qual é o enquadramento adequado para conduta de Paulo?
Paulo deve ser enquadrado no homicídio culposo de acordo com o art. 302 da lei 000.503/0007, por se tratar de crime ocorrido na direção de veículo automotor, incidindo assim o Código de Trânsito Brasileiro, pelo princípio da especialidade.
Art. 302, II e III do CTB
A verdade é que o CTB dá claras mostras de que não considera da mesma gravidade o homicídio culposo comum (art. 121 § 3. º do CP) e o homicídio culposo de trânsito, e aí, para nós, modestamente, não há nenhuma inconstitucionalidade, por não ferir o princípio da "isonomia". Em que pese ambos serem delitos culposos, o desvalor da conduta fática é bem diferente em um e outro caso. Como exemplos: a morte causada a um paciente por um médico negligente (enquadramento no art. 121, § 3. º do CP) não se compara ao homicídio praticado pelo motorista embriagado que atropela e mata crianças brincando sobre a calçada, em bairro de periferia (enquadramento no art. 302 do CTB); no mesmo sentido, o falecimento de um operário da construção civil por culpa do engenheiro (art. 121, § 3. º do CP) e mortes causadas pelo motorista imprudente que trafega na contra-mão direcional (art. 302 do CTB), etc…
O HOMICÍDIO CULPOSO NO TRÂNSITO – O art. 302 do CTB e o art 121, § 3º. do CP
Rômulo de Andrade Moreira [1]
Como se sabe, com o advento da Lei n. º 000.503/0007 a pena para o homicídio culposo ocorrido na direção de veículo automotor foi aumentada em relação àquela prevista no Código Penal. Por esta razão alguns passaram a entender pela inconstitucionalidade do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, por estabelecer uma sanção maior para uma mesma conduta culposa. Pensamos diferentemente, no entanto. A conclusão de que não há nenhuma inconstitucionalidade nas sanções diferenciadas previstas para o homicídio culposo no trânsito e os demais passa pelo estudo do desvalor da ação neste tipo de delito.
Com efeito, a antijuridicidade de um comportamento é composta pelo chamado desvalor da ação e pelo desvalor do resultado; o primeiro, segundo Cezar Roberto Bitencourt é a “forma ou modalidade de concretizar a ofensa”, enquanto que o segundo é “a lesão ou exposição a perigo do bem ou interesse juridicamente protegido”.
Este mesmo autor, citando agora Jescheck, ensina que modernamente a “antijuridicidade do fato não se esgota na desaprovação do resultado, mas que ‘a forma de produção’ desse resultado, juridicamente desaprovado, também deve ser incluído no juízo de desvalor”.[2] Assim, é inegável que o estudo da antijuridicidade leva à conclusão de que esta se perfaz não apenas com a valoração do resultado como também (e tanto quanto) com o juízo de valor a respeito da ação (ou omissão).
Utilizando-se como exemplo a Parte Especial do Código Penal Espanhol, Muñoz Conde explica porque o Direito Penal “pune mais gravemente alguns fatos já delitivos, quando se realizam de uma forma especialmente intolerável, como o homicídio qualificado (art. 406) ou o roubo (arts. 500, 501, 504) etc.” [5] É exatamente por isso que em nosso ordenamento jurídico/penal é punido mais gravemente, por exemplo, o furto praticado durante o repouso noturno; neste caso, a conduta delituosa e o resultado são os mesmos: subtrair coisa alheia móvel com prejuízo patrimonial para outrem; ocorre que determinada circunstância externa no comportamento do autor (furtar à noite) fez com que, valorando diferentemente as ações, o legislador punisse mais gravemente esta maneira especial de subtração.
O mesmo fenômeno, agora em delito culposo, está previsto no próprio art. 121, § 4º. do Código Penal onde se observa que uma mesma conduta culposa é, no entanto, punida mais gravemente quando praticada com inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício. Exemplos como tais existem muitos no Código Penal de todos os países, sendo aceitos pacificamente, exatamente pela diferenciada forma de execução da conduta delituosa mesmo porque as ações são efetivamente diversas, como o é matar alguém culposamente no trânsito ou ao disparar acidentalmente uma arma de fogo.
Como diz Muñoz Conde, “o que sucede é que, por razões de política criminal, o legislador na hora de configurar os tipos delitivos pode destacar ou fazer recair acento em um ou em outro tipo de desvalor”.[6] Explicitados estes conceitos, evidencia-se lógico e possível que dentro de um ordenamento jurídico e à vista de dados culturais e realísticos, puna-se mais severamente um crime culposo praticado no trânsito do que um outro delito, também culposo, porém ocorrido em outras circunstâncias. Rechaçando a tese da inconstitucionalidade, Cezar Roberto Bitencourt pergunta:
“A ação do indivíduo que, limpando sua arma de caça, em
determinado momento, involuntariamente dispara, atingindo um ‘pedestre’, que
passava em frente à sua casa, será igual à ação de um motorista que, dirigindo
embriagado, atropela e mata alguém? A ação do indivíduo que, desavisadamente, joga
um pedaço de madeira de cima de uma construção, atingindo e matando um
transeunte, terá o mesmo desvalor que a ação de um motorista que, dirigindo em
excesso de velocidade ou passando o sinal fechado, colhe e mata um pedestre?
Inegavelmente o resultado é o mesmo: morte de alguém; o bem jurídico lesado
também é o mesmo: a vida humana. Mas a forma ou modalidade de praticar as ações
desvaliosas seriam as mesmas, isto é, o desvalor das ações seria igual?”[7]
Com o surgimento do Código de Trânsito Brasileiro estabeleceu o
legislador pátrio a necessidade de uma punição mais severa para as condutas
praticadas no trânsito, na direção de veículo automotor, exatamente pelo caos que
hoje assistimos nesta seara; os abusos observados foram de uma tal ordem que se
detectou a necessidade de incrementar a sanção.
Somos absolutamente contrários à política criminal do legislador
brasileiro que criminaliza indiscriminadamente condutas e aumenta penas
desajustadamente sem atentar para os princípios orientadores do Direito Penal
Mínimo; porém, neste caso, à vista das peculiaridades da conduta e da realidade do
nosso trânsito, entendemos conveniente a diferenciação estabelecida nas condutas
culposas.
Aliás, esta questão não é nova, muito pelo contrário. Já em 100066
Magalhães Noronha, no seu clássico “Do Crime Culposo” advertia, como que
profetizando:
“São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo, e o número de
veículo – principalmente automóveis – vai também em ascensão vertiginosa. São os
autos principalmente o instrumento do crime culposo; são geralmente os ceifadores da
vida humana.
“Nossas vias são transformadas em autódromos, ora por
diletantismo, como se dá com os carros particulares, ora por ganância, como ocorre
com os famosos autolotações, apelidados na gíria pitoresca do público de fominhas.
“Felizmente, está para entrar em vigor o novo Código Nacional de
Trânsito, que, ao lado de outras providências, aumenta substancialmente as multas,
terminando com o regime de impunidade, que a tanto equivalem as atuais de vinte e
trinta cruzeiros …”[8]
Tratando especificamente dos delitos de circulação, diz Mestieri que
“o incremento do tráfego motorizado sensibilizou os sistemas jurídicos, reclamando
deles pronta e eficaz disciplina, principalmente no campo do direito administrativo, no
civil e no penal”, reafirmando que “o ilícito nesses delitos vem a ser o desvalor da ação
praticada, um juízo sobre ao fato, não ainda sobre o autor.”[000]
O que observamos é que o Código de Trânsito Brasileiro ao
estabelecer figuras típicas relacionadas com a direção de veículo automotor,
demonstrou uma clara reação do Estado à crescente violência no trânsito.
É exatamente por este aspecto que muitos já escreveram, e outros
hoje ainda afirmam, que o homicídio culposo e as lesões culposas ocorridas no trânsito
devem ser realmente definidos em lei especial, como, por exemplo, Heleno Cláudio
Fragoso, José Frederico Marques, João Marcelo de Araújo Júnior e Damásio de Jesus.
A lei especial, destarte, além de definir especificamente aquelas
condutas pode, como vimos, à vista do desvalor da ação, punir mais severamente o
crime culposo automobilístico.
A segurança do trânsito, interesse jurídico precipuamente protegido
no Código de Trânsito Brasileiro, alcança não a uma pessoa determinada, mas sim à
coletividade (ao contrário de outros delitos culposos), o que justifica, portanto, a
severidade da sanção.
Diante do exposto, e respeitando-se a opinião em contrário,
pensamos diferentemente, ainda que seja sedutora a idéia defendida pela corrente
diversa.
Vítima e multa reparatória
no Código de Trânsito Brasileiro.
Lélio Braga Calhau[10]
A vitimização no trânsito no país é de extrema gravidade. Mais de
cinqüenta mil pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito no Brasil e, nem o
Poder Público investe suficientemente em campanhas educativas, e nem a sociedade
civil se toca da tragédia que abala os lares de quase todo os brasileiros.
Todos nós, sem exceção, somos vítimas diretas ou não da baderna que é
o trânsito brasileiro. O trânsito é um dos bastiões da impunidade e cada vez mais
pessoas são vitimizadas. Famílias inteiras são assassinadas por irresponsáveis no
trânsito sendo que a resposta estatal (penal e administrativa) é vergonhosa.
As vítimas são deixadas muitas vezes em situação de total desamparo
pelo Poder Público (quando sobrevivem) e os investimentos por parte do governo para
reduzirmos essa vitimização a níveis civilizados são irrisórios.
A proteção das vítimas passa pelo fortalecimento do Direito Administrativo
no trânsito e com a atuação eficaz e preventiva dos agentes de trânsito. É muito fácil
falar em princípio da intervenção mínima do Direito Penal no trânsito, mas ninguém
quer assumir a conta da vitimização de trânsito no Brasil.
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É nefasta a influência de políticos no âmbito municipal, muitas vezes
tentando impedir o agente de trânsito de agir dentro da legalidade, fiscalizando e
aplicando as multas administrativas no cumprimento estrito do seu dever legal.
Em muitos lugares no Brasil, o direito administrativo do trânsito é tão
frágil que policiais que atuam eficazmente no sentido de defender a coletividade são
removidos de suas unidades, atendendo a pedidos de políticos ou pessoas influentes,
em claro detrimento dos reais interesses da sociedade civil.
Vê-se que a vítima de trânsito está completamente abandonada, pois
enquanto os órgãos de trânsito tentam aplicar a cultura da prevenção nos municípios,
algumas pessoas, com o interesse claramente pessoal ou político, fazem passeata,
protestam em via pública, determinam que os comerciantes fechem os
estabelecimentos comerciais etc, com o claro intuito de intimidar os agentes de
trânsito.
Todavia, quando uma pessoa é vitimizada num acidente de trânsito, não
aparece uma voz na multidão para fazer uma passeata ou exigir ajuda para a vítima
ou sua família.
Talvez, por isso, tenha o novo Código Brasileiro de Trânsito inovado (e
deixado perplexos alguns estudiosos) com a introdução de um instrumento de efetivo
auxílio à vítima criminal que é o instituto da polêmica multa reparatória.(01)
Cezar Roberto Bittencourt ensina que tem predominado o entendimento
de que o dano sofrido pela vítima do crime não deve ser punido, mas reparado pelo
agente. Enfim, os argumentos são os mais variados, mas acabam todos produzindo
sempre uma mesma e injusta conseqüência: o esquecimento da vítima do delito, que
fica desprotegida pelo ordenamento jurídico e abandonada por todos os organismos
sociais que, de regra, preocupam-se somente com o agente, e não com a vítima. Na
realidade, diz o mestre, como tivemos oportunidade de afirmar, "os acenos que mais
se aproximaram de uma pálida tentativa de reparar uma das mais graves injustiças
que o Direito Penal, historicamente, tem cometido com a vítima referem-se à multa
reparatória".(02)
Na tradição de nossos códigos de trânsito, só conhecíamos a multa
administrativa. Portanto, sem nenhuma possibilidade de converter-se em pena
privativa da liberdade, mesmo quando a multa indevidamente não fosse paga. Não era
assim na legislação de trânsito mais antiga, germânica, italiana, francesa, suíça e de
outros países mais civilizados. As infrações de trânsito, mesmo leves, constituíam
infrações penais, com suas características e conseqüências, aplicadas pela Justiça
Penal. Com o surto moderno da descriminalização, isto é, retirar o caráter de crime das
infrações menos graves, foram transformadas, em geral, em infrações administrativas.
As conseqüências sociais decepcionaram, como registram insignes mestres, dentre eles
G. Vassali, W. Middendorff, G. Kaiser, J. Chazel e outros, também nos EUA.(03)
O artigo 20007 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 000.503/0007) prevê que,
em caso da ocorrência de vítimas em crime de trânsito, a penalidade de multa
reparatória consiste no pagamento, mediante depósito judicial em favor da vítima, ou
de seus sucessores, de quantia calculada com base no disposto no § 1o do artigo 4000
do Código Penal, sempre que houver prejuízo material resultante do crime. Diz ainda o
parágrafo primeiro do referido artigo que a multa reparatória não poderá ser superior
ao valor do prejuízo demonstrado no processo.