ENFITEUSE E TERRENOS DE MARINHA REGINA RODRIGUES RUSSO Advogada e Funcionária Pública da Justiça Federal SUMÁRIO: 1. Enfiteuse e Terrenos de Marinha. 2. A Caducidade e a Possibilidade de Revigoração. 3. A Atualização do Foro. 4. Conclusão. Bibliografia. 1. ENFITEUSE E TERRENOS DE MARINHA O Código Civil, no artigo 678, nos dá o conceito de enfiteuse ao prescrever que “dá-se a enfiteuse, aforamento ou aprazamento quando, por ato entre vivos ou de última vontade, o proprietário atribui a outrem o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa a que o adquire, e assim, se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro anual, certo e invariável.” Acrescenta o art.679 que “o contrato de enfiteuse é perpétuo.” A enfiteuse é o mais amplo dos jus in re aliena, transferindo ao enfiteuta o jus utendi, fruendi e até o disponendi, pois este pode alienar seus direitos sem que haja anuência do senhorio, podendo ainda reivindicar a coisa de quem quer que seja. São-lhe, portanto, atribuídos o direito de usufruir o bem do modo mais completo possível, o de aliená-lo e o de transmiti-lo por sucessão hereditária. Pelo artigo 678 do Código Civil pátrio, a enfiteuse só pode ter por objeto coisa móvel, limitando-se a terras incultas e aos terrenos que se destinam à edificação (CC, art. 680), devido a sua finalidade econômico-social. Além desses imóveis, todavia, a enfiteuse pode recair sobre terrenos de marinha e acrescidos. Como esses bens são pertencentes à União Federal, constituindo-se bens públicos dominiais, seu aforamento é regido por lei especial, o Decreto-lei no. 9.760/46, aplicando-se, no que couber, os preceitos de direito comum. Não possui a União as mesmas características e as mesmas liberdades de que dispõe o particular, uma vez que o patrimônio que lhe cabe administrar pertence à coletividade, razão de ser o Estado, e afinal, à Nação. São bens de uso privativo, que alguns denominam de uso especial, conferindo-os a Administração Pública, mediante título jurídico individual, à pessoa ou grupo de pessoas determinadas, para que exerçam o direito de uso com exclusividade. Este pode ser outorgado a pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, pois nada impede que um ente público consinta que outro utilize privativamente de bem público integrado em seu patrimônio. Em estudo sobre o contrato enfitêutico, o renomado jurista HELY LOPES MEIRELLES afirma sê-lo tão discutido em doutrina quanto desnecessário na nossa legislação positiva. A alegação corrente de que a enfiteuse, ou aforamento, é coisa arcaica, é velharia dos tempos medievos, não é correta. A Idade Média apenas hipertrofiou o instituto que poderia tão bem desempenhar seu papel funcional nos tempos hodiernos, desde que resgatado seu valor pecuniário. Sem embargo, todavia, das vozes uníssonas que assim se pronunciam, o aforamento de bens públicos, especialmente no que diz respeito a terras de marinha, ainda possui largo uso, por vezes destoado de sua função pública, e visto com olhos do prático-empresarial. Mas reconheço a tendência para extinguir-se o instituto, quer no direito privado quer no direito público, confirmada na norma das Disposições Transitórias da Carta Magna vigente. Faculta-se aos foreiros, no caso de sua extinção, a remição dos aforamentos mediante aquisição do domínio direto, na conformidade dos respectivos contratos. No entanto, o parágrafo terceiro determina que a enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima. 2. A CADUCIDADE E A POSSIBILIDADE DE REVIGORAÇÃO O emprego de institutos do direito privado, tal a enfiteuse, para a transferência de uso privativo dos bens públicos, somente é possível no caso de bens dominicais, já que estes estão dentro do comércio jurídico de direito privado. Nesse caso, porém, como em todos aqueles em que a Administração Pública se utiliza do direito privado, este sofre desvios, derrogações necessárias para adaptar-se à peculiaridades da Administração. Isso ocorre, a fim de assegurar melhor atendimento do interesse público, haja vista que a aplicação pura e simples de contratos de direito civil aos bens patrimoniais disponíveis implica renúncia por parte do Estado à sua situação de supremacia sobre o particular. A finalidade pública constitui-se na tônica dos contratos firmados pelo Poder Público, ainda que regidos pelo direito privado, sob pena de restar caracterizado o desvio de poder. Norteia os fins públicos o princípio constitucional da moralidade administrativa, não bastando ao administrador o estrito cumprimento da lei, pois lhe cabe, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos da razoabilidade e da justiça. Ensina MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO que ocorre o ato administrativo imoral quando seu conteúdo contraria o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio e justiça. A moralidade exige, continua a ilustre doutrinadora, a proporcionalidade entre os meios e fins a atingir; entre os sacrifícios impostos à coletividade e os benefícios por ela auferidos. É nesse diapasão que afirma ROSITA DE SOUSA SANTOS, que ao contrário do que acontece no direito privado, cumpre à Administração Pública oferecer ao foreiro inadimplente todas as condições para que ele permaneça no uso e gozo da terra aforada, através da revigoração prevista no artigo 118 da lei especial. Como se sabe, o instituto do aprazamento é perpétuo, não possuindo a declaração de caducidade o objetivo de extinguir a enfiteuse. Sua extinção ocorre tão somente quando há uma pretensão do senhorio direto, a União Federal, em utilizar a terra de marinha para o serviço público, como estabelece o art. 120, do Decreto-lei no. 9.760/46. Não se vislumbrando tal pretensão, resta para a Administração Pública proporcionar todas as condições para a permanência do então foreiro no uso e gozo do terreno ou instituir nova enfiteuse. Mostrando-se possível o revigoramento do contrato enfitêutico, imoral e contrário à finalidade pública, constituiria-se o ato administrativo denegatório, fundamentado, simplesmente, na caducidade do contrato, porquanto denota-se a imparcialidade do Poder Público quando da preferência por outrem, em prejuízo do atual foreiro, na efetivação da nova relação jurídica. De fato, a utilização do bem público sob aforamento está efetivamente sujeita à caducidade por inadimplemento do foreiro, independendo o reconhecimento do comisso de decisão judicial, mas fica a mesma relegada a hipótese em que não possui aquele interesse em seu revigoramento ou tendo-o, não possui lastro financeiro suficiente a saldar a conta. Diga-se, ainda, que ocorre a caducidade pela grave deterioração do imóvel aprazado, pela morte do foreiro sem herdeiros ou, ainda, pela alienação do domínio útil sem prévia audiência do senhorio. Frise-se que sempre buscou a Administração Pública um caminho que lhe permitisse solucionar o problema dentro do âmbito de sua competência e foi a partir de 1938 que, amparado em texto expresso no Decreto-lei 710, não mais se preocupou com o Poder Judiciário para decretação da pena de comisso, utilizando-se para tal de um ato declaratório administrativo. Entenda-se, entretanto, que esse procedimento no âmbito administrativo deve estar adstrito às prescrições constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Realmente, a Lei Maior, no seu art. 5o., incisos LIV e LV, assegura que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal e que aos litigantes em processo judicial ou administrativo são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A Administração Pública está adstrita ao comando constitucional que garante ao administrado/litigante em processo administrativo opor-se, contestar, produzir provas e conduzir sua linha de defesa conforme as suas conveniências. A garantia da ampla defesa, conjugada com o direito de acesso ao Judiciário e ao contraditório, ao lado do direito ao devido processo legal forma o dogma constitucional da proteção judiciária, garantindo-se não apenas um simples procedimento como forma de atingir direitos alheios, mas as formas instrumentais adequadas. Assim, no resguardo dos bens da União a Administração tem o poder-dever de cumprir a lei, mas ao mesmo tempo pugnar pela moral pública, atendo-se à razoabilidade de seus atos. Possibilitando o Decreto-lei 9.760/46, artigos 118 a 121, em benefício do enfiteuta inadimplente, a revigoração do aprazamento, não pode a União Federal criar embaraços desmedidos a essa finalidade legal, haja vista que a qualquer tempo, saldado o débito, tem o foreiro direito de peticionar para alcançar esse mister, o que denota direito de preferência, em igualdade de condições, sobre outros interessados. 3. A ATUALIZAÇÃO DO FORO No Brasil, por força das circunstâncias peculiares, nunca foi a enfiteuse uma instituição odiosa. A vastidão das propriedades e a escassez de população produziram aqui, na época da colonização, os mesmos resultados que em Roma no tempo dos imperadores: para ter quem cultivasse e aproveitasse as terras, cumpria fazer os emprazamentos com condições vantajosas para o enfiteuta: daí os prazos perpétuos e a modicidade das pensões. Ao longo dos anos, as circunstâncias fáticas envolvendo o trinômio população-terra-riqueza fez surgir a necessidade de atualização dos foros, aviltados pelos tempos inflacionárioa vividos, pela valorização dos terrenos sitiados às margens do mar e, sobretudo, pela injusta concentração de riqueza nas mãos de poucos. A jurisprudência nacional ainda diverge sobre a aplicação da Lei 7.450/85, que prevê a atualização dos foros, sobre contratos enfitêuticos celebrados anteriormente a sua vigência. A Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 6º, § 1º, reputa ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, e segundo o jurista e Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA, na magnitude de seus ensinamentos, “ato jurídico perfeito, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Carta Magna, é aquele que sob o regime da lei antiga se tornou apto a produzir os seus efeitos pela verificação de todos os requisitos a isso indispensável. É perfeito ainda que possa estar sujeito a termo ou condição.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 11ª edição, p. 414). Assim, o ato jurídico perfeito não poderá ser alcançado por lei póstera, estando imunizado contra quaisquer requisitos formais exigidos pela nova norma. CLÓVIS BEVILÁQUA, na magnitude de seus ensinamentos, afirma: se a lei pudesse dar como inexistente ou inadequado o ato jurídico, já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, o direito adquirido dele oriundo desapareceria por falta de título ou fundamento. Ao que pese a excelência dessa lição, entendo que a correção deve ser sempre plena, adotando-se os índices da inflação como medida que se impõe como requisito de ordem ética, em primeiro lugar, para reparar, ainda que de modo apenas parcial, os graves efeitos da depreciação do poder aquisitivo da moeda e diminuir os danos derivados da insegurança jurídica, impedindo a formação de relações jurídicas de longo prazo. É nesse sentido que vem se firmando a jurisprudência das Cortes Máximas de Justiça do nosso país, como de depreende nas paradigmáticas decisões a seguir transcritas: “Já está assentada a jurisprudência da Corte no sentido de que a atualização prevista na Lei 7.450/85, que modificou o art. 101 do Decreto-lei 9.760/46, não corresponde a um aumento do valor do foro e se aplica a todos os contratos de aforamento, inclusive os firmados antes da referida alteração legislativa.” (STJ, REsp 206461/RJ, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, DJU 17.12.99, p. 357) “Os contratos de enfiteuse celebrados com particulares e envolvendo imóveis da União se regem por normas de direito público (Decreto-lei 9.760/46), inaplicável o preceito do Código Civil (art. 678), no pertinente à atualização do foro, prevalecendo, nesta parte, a lei especial. A enfiteuse dos terrenos de marinha tem sua disciplina em lei especial, por ser contrato de direito administrativo, aplicando-se-lhe as normas do direito comum nos aspectos jurídico sem que o legislador não instituiu provisões atinentes ao aforamento de bens públicos. A retribuição da enfiteuse (foro), uma vez que atrelada ao valor do domínio pleno do imóvel, esteve sempre sujeita a variações, quer em decorrência do processo inflacionário, quer por fatores outros que alteram o valor patrimonial (do imóvel), estando a União autorizada, independentemente da promulgação da Lei no. 7.450/85, alterar a percentualização do foro sempre que modificado o valor do domínio pleno do terreno emprazado. Precedentes. (STJ, REsp 68342/RJ, Rel. Min. DEMÓCRITO REINALDO, DJU 01.07.96, p. 23.992) “Atualização prevista pela Lei no. 7.450/85, superveniente à constituição do aforamento, ao dar nova redação ao art. 101 do Decreto -lei no. 9.760/46. Providência legítima, na medida em que se ativer aos índices da correção monetária, mas inconciliável com a garantia do ato jurídico perfeito (art. 5º, XXXVI, da Carta de 1988 e art. 153, § 3º, da pretérita), quando venha a refletir a valorização do domínio pleno, resultante de fatores outros que não a simples desvalorização da moeda. Recurso extraordinário parcialmente provido, a fim de ser julgada, em parte, procedente a ação, para excluir, das importâncias exigidas ao enfiteuta, a parcela porventura excedente do foro inicial, monetariamente corrigido, conforme se vier apurar, em liquidação. (STF, RE 143.856/PE, Rel. Min. OTÁVIO GALLOTTI, DJU 02.05.97, P. 16566) A correção monetária importa em manutenção de valor dos foros, sem que com isto ocorra qualquer espécie de enriquecimento injustificado por parte da União Federal. Age esta em prol do interesse público, na ética e moral inerentes aos atos administrativos. 4. CONCLUSÃO As terras de marinha são frutos de decisões e de atos da Administração visando à reserva de um espaço físico para desenvolvimento de uma política econômica. Assim foi desde a colonização portuguesa, e podemos afirmar que assim permanece até hoje, como também nunca obteve o Estado, do uso dessas terras, o proveito integral que poderia canalizar para o Tesouro Nacional. Cabe-nos concluir que a velha enfiteuse do Direito Romano continua, tal como nos foi legada pelo Direito-histórico, a servir à União e aos seus nacionais, com vantagens recíprocas, os quais podem alcançar vultoso proveito econômico, financeiro e social, de muito maior expressão que pode registrar, mormente quando utilizado o instituto da revigoração do contrato de aforamento e a atualização dos foros acertados em avenças pretéritas, como imposição da ordem pública ética. |