[MODELO] Assistência medicamental: direito à saúde frente ao Estado
ESTADO DO RIO DE JANEIRO
PODER JUDICIÁRIO
COMARCA DA CAPITAL
JUÍZO DE DIREITO DA 10ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA
Processo nº
Ação: Ordinária
SENTENÇA
Vistos etc…
I
, qualificados na inicial, aXXXXXXXXXXXXaram a presente ação em face do ESTADO DO RIO DE JANEIRO, pedindo a declaração do direito ao recebimento de assistência medicamental por parte da ré, para efeitos de tratamento da moléstia denominada Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, bem como a imposição do fornecimento destes. Como causa de pedir, alega o autor, em síntese, ser portador do vírus da AIDS, e por este motivo necessitar, com urgência, conforme prescrição médica, dos medicamentos de terapia antiretroviral, de fabricação moderna e que inibem a transcriptase, bloqueando a replicação do vírus HIV através da inibição da produção de proteína reversa, sendo tais medicamentos de alto custo. Assim, por trazer a aquisição dos remédios oneração, e por não ter meios financeiros para obtenção destes, tudo somado à regra do art. 196, e seguintes da C.F., entende ser dever do Estado a prestação destes (fls.).
Com a inicial vieram os documentos de fls.
Com idêntica fundamentação e reiteração de narrativa, a autora aXXXXXXXXXXXXou, em caráter preparatório, medida cautelar, que se encontra em apenso, objetivando a concessão imediata dos medicamentos, trazendo como perigo da demora a perspectiva de vir a falecer antes da decisão final em sede do processo principal.
A liminar foi deferida e trouxe recurso de agravo, distribuído à Câmara Cível do T.J..
Formulou a parte autora pleito de antecipação de tutela, que foi apreciado e deferido às fls. , através de decisão que sofreu recurso de agravo, distribuído à Câmara Cível do T.J..
Regularmente citado, o réu apresentou contestação (fls. ),
em ambos os processos (fls. ação principal, e fls. ação cautelar), com argumentos de descabimento da cautelar, face ao tipo de provimento – satisfativo – e, quanto ao mais, para efeitos das duas demandas o seguinte: …
alegando, em síntese, o seguinte: não ser dever do Estado o fornecimento indiscriminado de medicações; conter a regra constante do dispositivo constitucional conteúdo programático, sendo a legislação infraconstitucional (lei nº 8080/90 e 9313/96) não impositiva desta prestação; por fim, não ser o Estado segurador universal e efetivamente apresentar a medicação em foco alto custo, se visto a perspectiva de outros infectados tentarem o mesmo pleito.
Com a contestação vieram os documentos de fls.
Réplica às fls.
Parecer do Ministério Público às fls. , opinando no sentido da procedência do pleito autoral.
II
É o relatório. Fundamento e decido.
Conforme se nota, a causa encontra-se madura para julgamento. A matéria posta envolve conhecimento apenas de direito. A questão fática é incontroversa.
O tema posto refere-se ao conceito e alcance do dever imposto pelo art. 196, e seguintes, da C.F., para os Entes da Administração Direta. Ou seja, saber se a prestação do serviço de saúde, como um direito genérico de todos, e obrigação do Estado, através de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, importa no fornecimento de medicamentos aos hipossuficientes.
A controvérsia do sentido e eficácia do art. 196, da C.F., não é nova, e teve, no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, como um dos seus primeiros julgados, o proferido pela 5ª Câmara Cível, da lavra do eminente e culto Des. MARCUS FAVER, que bem analisou a questão:
MANDADO DE SEGURANÇA – PORTADOR DE INSUFICIÊNCIA RENAL – FORNECIMENTO DE MEDICAÇÃO.
Portadora de insuficiência renal, em estado terminal, frente a Secretaria Municipal de Saúde. Objetivo de fornecimento compulsório de medicação. Direito à vida e a saúde assegurado a todos pelos arts. 5º, 6º, 196 e seguintes da C.F.. Obrigação em decorrência do Sistema Único de Saúde. Lei nº 8080/90. Pressupostos evidenciados. (Ap. Cível nº 1069/95)
No corpo do referido acórdão, mencionando parecer do Procurador de Justiça PAULO CESAR PINHEIRO CARNEIRO, foram analisadas todas as questões também aqui levantadas em sede de contestação, como se segue:
“No caso em exame, a questão de direito à saúde está relacionada com a garantia constitucional do direito à vida (artigo 5º, caput), eis que a apelada possui doença em estado avançado, necessitadno do medicamento postulado para o fim de manter-se com vida.
Nesta linha, e a esta altura, é absolutamente fantástica, até esotérica, a discussão sobre ser ou não programática, ser ou não aplicável a norma do artigo 196 da Constituição Federal até que legislação própria venha a regular os contronos e os limites da obrigação do Estado em garantir a saúde.
Assim, no nosso caso concreto a apelada possivelmente não poderia nunca exercer o seu direito constitucional à vida e à saúde e muito exigir tal dever do Estado. No primeiro momento, porque não regulamentado o princípio e, no segundo momento, porque, possivelmente, já estaria morta, não precisando mais de medicamentos.
É preciso, antes de tudo, e aí reside o verdadeiro acesso à justiça que todo e qualquer direito subjetivo possa ser postulado em juízo. Ora, se o direito à vida e à saúde existem, ao que tudo indica, pelo menos na nossa Constituição, e é um dever do Estado garanti-lo, é evidente, e aí o silogismo … .
Neste passo, é preciso reiterar mais uma vez, e disto ninguém discorda neste processo, que a apelada precisa de medicação não para curar eventual doença, mas sim para continuar com vida. Não se pode imaginar, por mais fértil que seja uma imaginação, que eventual lei reguladora deste direito e, portanto, desta obrigação do Estado possa prever que no caso específico deste processo, ou melhor, que todas as pessoas que eventualmente venham a se encontrar na mesma situação da apelada devam morrer.
Note-se que, como bem asseverou o XXXXXXXXXXXX de primeiro grau, em sua doutra sentença, a própria infraconstitucional (lei nº 8080/90), encarregada de sistematizar amiúde a aplicabilidade dos dispositivos inscritos no Texto Maior, assegura aos indivíduso a prestação de assistência farmacêutica integral (art. 6º, I, d), explicitando, ainda mais, a possibilidade de a impetrante, ora apelada, obter do Estado, especificamente, o medicamento de que necessita para a sua sobrevivência, não eixando dúvids quanto à extensão do direito constitucionalmente assegurado.” (A Atuação do Ministério Púbico na Área Cível, Lumem Juris, p. 159/160).
Evidente, por conseguinte, o dever tanto da União, como do Estado e do Município, por força da regra constitucional, que é de eficácia plena, garantir o direito e o acesso à saúde a todos os cidadãos.
Aliás, mesmo não fosse de eficácia plena referido dispositivo, hoje a legislação infraconstitucional é clara. Tanto a lei 8080/90 (art. 6º, I, letra d), quanto a lei 9313/96 (arts. 2º e 3º), asseguram o direito a assistência medicamental por parte da Administração àqueles que são necessitados. O SUS, como sistema próprio para a prestação do serviço de saúde impõe também ao Estado a responsabilidade por essas despesas.
O dever político constitucional que se impõe ao Poder Público em todas as dimensões da organização federativa, de assegurar a todos a proteção à saúde e de dispensar assistência aos desamparados (arts. 6º e 196, da C.F.), constitui fator que, associado ao imperativo de solidariedade humana, enfraquece o obstáculo levantado pelo Estado do Rio de Janeiro.
Por isto é que, especificamente quanto ao fornecimento de medicação para AIDS, o Tribunal de Justiça pacificou seu entendimento, valendo os seguintes julgados:
AIDS – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO – TUTELA ANTECIPADA – RCURSO DESPROVIDO.
“… É dever do Estado, imposto constitucionalmente, garantir o direito à saúde a todos os cidadãos. Tal norma não é simplesmente programática, mas também definidora de direito fundamental e tem aplicação imediata.” (Agravo de Instrumento 2303/97, Reg. em 31/10/97, Fls. 12825/12830, Capital, 2ª C.C., Unânime, Des. LUIZ ODILON BANDEIRA, Julg: 02/09/97).
AIDS – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO – TUTELA ANTECIPADA – LEI Nº 9313, DE 996 – ART. 196 C.F./88 – ART. 288 C.E/89.
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem á redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (Constituição Federa, art. 196 e Estadual, art. 288). Agravo contra tutela antecipada contra o Estado, para que este fornçea medicamentos de urgência. Improvimento. (Agravo de Instrumento 1081/97, Reg. em 01/10/97, Fls. 11220/11221, 8ª C.C., Unânime, Des. SEMY GLANZ, Julg: 12/08/97).
AGRAVO DE INSTRUMENTO – TUTELA ANTECIPADA – AIDS – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO – LEI Nº 9313 DE 1996 – CONSTITUIÇAO FEDERAL DE 1988
…
2 – A lei nº 9313/96 e a própria Carta Magna Federal asseguram tal direito, competindo ao Estado, em atendimento a seus próprios fins, zelar pela saúde, educação e segurança dos cidadãos, entre outros direitos fundamentais. (Agravo de Instrumento 608/97, Reg. em 19/11/97, Fls. 13952/13961, 10ª C.C., Por Maioria, Des. JORGE MAGALHÃES, Julg: 18/06/97).
LEGITIMIDADE PASSIVA – LEI Nº 8080/90 – LEI Nº 9313/96
… O Estado é parte passiva legítima para responder à ação, como integrante do Sistema Único de Saúde, com atribuições e competência já reguladas pela Lei Federal nº 8080/90. Direito à saúde. Art. 196 e seguintes da Constituição Federal. Adevento da Lei nº 9313, de 18.11.96, que assegurou aos protadores de HIV e doentes de AIDS o recebimento gratuito, do Sistema ùnico de Saúde, de medicamentos necessários ao tratamento. … (Agravo de Instrumento 829/97, Reg. em 29/09/97, fls. 11165/11168, Capital, 9ª C.C., Unânime, Des. ELMO ARUEIRA, Julg: 30/08/97).
AIDS – PRESERVAÇÃO DA VIDA – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO – LEI Nº 8080/90 – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE – ART. 1º, ART. 2º, LEI Nº 9313/96 – CONCESSÃO DE LIMINAR – AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECURSO IMPROVIDO.
… A saúde é um direito assegurado constitucionalmente às pessoas, dado que inerente à vida. O Estado tem o dever de prover às condições indispensáveis ao seu pleno exercício. as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada, constituindo um sistema único. a Lei “F” 9313/96 assegura aos protadores do HIV, e doentes de AIDS, o direito de receber, gratuitamente, do SUS, toda a medicação necessária a seu tratamento … . (Agravo de Instrumento 811/96, Reg. em 12/05/97, Fls. 8987/8991, Capital, 7ª C.C., Unânime, Des. RONALD VALLADARES, Julg: 18/0/97).
Resta a análise da demanda cautelar. Esta, por ser instrumental, segue o mesmo destino da principal, sendo procedente a tutela obtida, principalmente quando visto que o que está em jogo é o próprio direito à vida, trazendo como patente o requisito do perigo da demora, encontrando-se a fumaça do bom direito já analisada acima.
Finalizando, não seria muito trazer trecho da sentença prolatada pelo ilustre XXXXXXXXXXXX CARLOS AUGUSTO BORGES: “… ainda se esse direito não fosse acomodado numa regra escrita (non escriptum), estaria inata na morada da consciência dos que julgam (sed nata), com fincas no direito natural: jus est arts boni et aequi (o direito é arte do bem e do justo).”
Patente, como se retira do acima colocado, o direito as medicações. Resta saber se viável o pleito de reparação moral.
A toda evidência não cabe esta reparação. Não estão presentes os elementos próprios para a mesma. O mero incômodo ou demora na prestação, pelo Estado, do seu dever de assistência quanto a saúde acarretando a necessidade de vinda ao Judiciário, não importa em surgimento de trauma ou enorme sofrimento para efeitos de indenização moral.
Esta apenas seria viável se estivessemos diante de uma situação que impusesse um sofrimento fora da normalidade, a ponto de interferir intensamente no comportamento psicológico, causando aflições, angústias e desequilíbrios. Não ocorre este tipo de abalo quando se está diante de uma negativa na prestação de um serviço público.
Quanto ao que é dito, vale o ensinamento sobre o momento em que está configurado o dano moral, feito por SERGIO CAVALIERI FILHO, em seu Programa de Responsabilidade Civil, 1ª ed., p. 76/77.
III
Ante o exposto:
I – JULGO PROCEDENTE o pedido contido em sede de ação principal, para declarar o direito do autor de ter garantido, a encargo do réu, os medicamentos necessários ao tratamento da moléstia mencionada, enquanto deles necessitar, mediante receita médica, observando aqueles aprovados pelo Conselho Federal e Regional de Medicina.
II – JULGO PROCEDENTE, outrossim, o pedido contido na medida cautelar, tornando definitiva a liminar concedida.
Imponho ao réu os ônus sucumbenciais, fixando os honorários advocatícios em 10% do valor da causa.
P.R.I..
Rio de Janeiro, de de l997.