ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 54:
DEMONSTRAÇÃO DE SEU CABIMENTO
MEMORIAL DA AUTORA
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DE TRABALHADORES NA SAÚDE (CNTS)
Sumário
A hipótese
Nota Prévia
Fundamento e legitimidade da atuação do supremo tribunal federal na matéria
Parte I
Possibilidade jurídica do pedido: propriedade da utilização da técnica da interpretação conforme a Constituição
Parte II
Atendimento dos requisitos constitucionais e legais de cabimento da ADPF
Conclusão
Excelentíssimo Senhor
Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE
Supremo Tribunal Federal
Ref. ADPF Nº 54
Excelentíssimo Senhor Ministro:
Em vista da Questão de Ordem designada para o próximo dia 20 de outubro, tendo por objeto o cabimento da ADPF proposta, pede vênia a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, por seu advogado, para submeter a V. Exa. o presente memorial.
Nas páginas que se seguem são enfrentadas as impugnações suscitadas, tanto a de caráter institucional – a de ser o Legislativo e não o Judiciário a instância própria de deliberação da matéria – quanto as de natureza dogmática, relativas à utilização da técnica de interpretação conforme a Constituição e ao cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental.
O memorial seguirá o roteiro apresentado ao início.
A hipótese
1. Postula-se, na ADPF nº 54, a interpretação conforme a Constituição dos art. 124, 126, caput e 128, I e II do Código Penal, para o fim de se reconhecer que eles não incidem no caso de interrupção da gestação de fetos anencefálicos. A anencefalia é a má-formação congênita pela qual o feto, por defeito de fechamento do tubo neural durante a gestação, não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex. Como conseqüência, o feto não terá qualquer viabilidade de vida extra-uterina.
2. Pelo menos desde o início da década de 90, centenas de juízes por todo o país concederam alvarás autorizando a antecipação do parto nessa hipótese. No Brasil, na linha do padrão internacional, adota-se a morte encefálica ou cerebral como critério científico para declarar um indivíduo morto. Isso é o que dispõe a Lei nº 9.434, de 4.01.97, que regula o transplante de órgãos no país. Ou seja: uma vez que se constate, de acordo com os critérios médicos próprios, a morte cerebral, o indivíduo será considerado morto, ainda que alguns de seus órgãos permaneçam funcionando por meio de aparelhos.
3. A “vida” intra-uterina do feto anencefálico corresponde, a rigor, apenas ao funcionamento de seus órgãos, mantido pelo corpo da gestante ao qual está ligado, da mesma forma que os órgãos de um indivíduo cuja morte cerebral tenha sido constatada podem ser mantidos em funcionamento por aparelhos a ele conectados. Ora bem: se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos fundamentais da gestante (dignidade, liberdade e saúde) que a obrigação de levar a cabo a gravidez acarreta. A incidência da norma penal no caso, portanto, será inteiramente desproporcional e inconstitucional.
4. Exposta a hipótese, com o fim de permitir que o intérprete visualize o problema como um todo, passa-se a enfrentar o tema específico da questão de ordem.
Nota Prévia
Fundamento e legitimidade da atuação do supremo tribunal federal na matéria
Legitimidade da jurisdição constitucional
5. Em sentido amplo, a jurisdição constitucional envolve a interpretação e aplicação da Constituição, tendo como uma de suas principais expressões o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. No Brasil, esta possibilidade vem desde a primeira Constituição republicana (controle incidental e difuso), tendo sido ampliada após a Emenda Constitucional nº 1665 (controle principal e concentrado). A existência de fundamento normativo expresso, aliada a outras circunstâncias, adiou o debate no país acerca da legitimidade do desempenho pela corte constitucional de um papel normalmente referido como contra-majoritário: órgãos e agentes públicos não eleitos têm o poder de afastar ou conformar normas e políticas públicas elaboradas por representantes escolhidos pela vontade popular.
6. Ao longo dos últimos dois séculos, impuseram-se doutrinariamente duas grandes linhas de justificação desse papel das supremas cortestribunais constitucionais. A primeira, mais tradicional, assenta raízes na soberania popular e na separação de Poderes: a Constituição, expressão maior da vontade do povo, deve prevalecer sobre as leis, manifestação das maiorias parlamentares. Cabe assim ao Judiciário, no desempenho de sua função de aplicar o Direito, afirmar tal supremacia, negando validade à lei inconstitucional. A segunda, que lida com a realidade mais complexa da nova interpretação jurídica, procura legitimar o desempenho do controle de constitucionalidade em outro fundamento: a preservação das condições essenciais de funcionamento do Estado democrático. Ao juiz constitucional cabe assegurar determinados valores substantivos e a observância dos procedimentos adequados de participação e deliberação.
7. A propósito do tema versado na ADPF objeto do presente memorial, e confirmando a tese desenvolvida nos parágrafos e notas anteriores, é bem de ver que as principais cortes constitucionais do mundo – Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Portugal etc. – já lidaram com questões afetas à interrupção da gravidez em hipóteses muito mais abrangentes do que aquela aqui versada. E a Suprema Corte da Argentina, em decisão histórica juntada à petição inicial, pronunciou-se especificamente sobre a legitimidade da antecipação do parto de fetos anencefálicos.
II. Inexistência de dificuldade contra-majoritária
8. O papel de preeminência exercido pelo supremo tribunalcorte constitucional na sustentação e equilíbrio do Estado constitucional moderno neutralizou, em intensidade relevante, a crítica relativa à denominada dificuldade contra-majoritária. O ideal democrático não se reduz ao princípio majoritário, cabendo ao órgão maior da jurisdição constitucional a função de árbitro do jogo e garantidor dos direitos fundamentais. Instigante que seja este debate, a verdade é que na questão discutida nesta ADPF nº 54 não se coloca qualquer dificuldade dessa natureza. A pretensão veiculada pela autora – tanto no pedido principal como no alternativo – não consiste na declaração de inconstitucionalidade de qualquer norma em vigor, a ser retirada do sistema. Vale dizer: não há qualquer grau de superposição entre Poderes. Pede-se tão-somente que o Supremo Tribunal Federal determine o sentido e alcance de normas constitucionais e infraconstitucionais, pronunciando uma interpretação harmonizadora, singelamente dedutível do sistema como um todo.
III. A hipótese não é de atuação como legislador positivo
9. O tipo de preocupação subjacente à terminologia legislador positivo, que remonta ao debate entre Kelsen e Carl Schmitt a propósito de quem deveria ser o guardião da Constituição, tem sido amplamente revisitado pela moderna teoria constitucional. Não é o caso, todavia, de se fazer aqui o desvio da discussão, à vista de sua inaplicabilidade à hipótese. Não se pede nem se espera que o Supremo Tribunal Federal atue como legislador positivo no processo objetivo aqui examinado, criando uma norma até então inexistente. A pretensão formulada pela autora da ação pode ser enquadrada em uma de duas categorias: (i) a da aplicação direta e imediata do texto constitucional; ou (ii) a da aplicação do direito infraconstitucional em harmonia com a Constituição. Em nenhuma das duas situações pretende-se que o STF inove originariamente na ordem jurídica, mas apenas que extraia do sistema a disciplina imposta à matéria.
IV. Força normativa da Constituição e aplicabilidade direta e imediata de suas normas
10. Uma das grandes mudanças de paradigma ocorridas na ciência jurídica ao longo do século XX foi o reconhecimento de força normativa às normas constitucionais. Entre nós, este processo só se consumou após a vigência da Constituição de 1988, com o impulso dado pela doutrina brasileira da efetividade. Investidas do atributo próprio das normas jurídicas – a imperatividade –, as normas constitucionais passam a tutelar, direta e imediatamente, as situações que contemplam, podendo ser invocadas tanto pelos cidadãos quanto pelos Poderes Públicos. O constituinte houve por bem explicitar este entendimento, na dicção expressa do art. 5º, § 1º: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
11. Como conseqüência, as normas constitucionais que consagram os preceitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade, bem como do direito à saúde, protegem de maneira direta e imediata as situações abrangidas por elas. Eventual ausência de intermediação do legislador ordinário – ainda que fosse esta necessária, o que não é o caso – não teria o condão de barrar sua aplicação pelo Judiciário na concretização daqueles valores e bens jurídicos.
V. Centralidade da Constituição e constitucionalização do direito infraconstitucional
12. Nestes últimos dezesseis anos, a normatividade e a efetividade acima apreciadas, aliadas ao desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, redefiniram o papel da Constituição na ordem jurídica brasileira. Neste novo cenário, o Código Civil (e os microssistemas que se formaram em torno dele, em áreas como direito do consumidor, criança e adolescente, locações, alimentos, divórcio, dentre outras) perdeu pouco a pouco sua posição de preeminência. Progressivamente, foi se consumando no Brasil um fenômeno anteriormente verificado na Alemanha, após a Segunda Guerra: a passagem da Lei Fundamental para o centro do sistema. À supremacia até então meramente formal, agregou-se uma valia material e axiológica à Constituição, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios.
13. A Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno de constitucionalização do direito infraconstitucional, também apelidado de filtragem constitucional , consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito em geral – civil, penal, processual, administrativo – não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional.
14. À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Constituição. Direta, quando uma pretensão se fundar em uma norma constitucional; e indireta quando se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões: a) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque, se não for, não poderá fazê-la incidir; e b) ao aplicar a norma, deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.
15. É disso que se trata na presente ADPF. Requer-se ao Supremo Tribunal Federal que proceda à leitura do Código Penal à luz da Constituição, interpretando-o de modo a realizar os preceitos fundamentais nela inscritos, impedindo uma desajustada interpretação retrospectiva. O intérprete constitucional deve ser passageiro do futuro e não prisioneiro do passado.
VI. Democracia deliberativa e razão pública
16. Por fim, e apenas para ampliar a justificação do argumento, cabe fazer breve referência a dois conceitos presentes no debate atual da teoria democrática e da filosofia constitucional. Na configuração moderna do Estado e da sociedade, a idéia de democracia já não se reduz à prerrogativa popular de eleger representantes, nem tampouco às manifestações das instâncias formais do processo majoritário. Na democracia deliberativa, o debate público amplo, realizado em contexto de livre circulação de idéias e de informações, e observado o respeito aos direitos fundamentais, desempenha uma função racionalizadora e legitimadora de determinadas decisões políticas.
17. Nesse ambiente, o tribunal constitucional deve ser o intérprete da razão pública, dela se valendo para justificar suas decisões. O uso da razão pública importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos – cuja validade é aceita apenas pelo grupo dos seus seguidores – e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais dispostos a um debate franco, ainda que não concordem quanto ao resultado obtido em concreto. O contrário seria privilegiar as opções de determinados segmentos sociais em detrimento das de outros, desconsiderando que o pluralismo é não apenas um fato social inegável, mas também um dos fundamentos expressos da República Federativa do Brasil, consagrado no art. 1º, inciso IV, da Constituição.
Parte I
Possibilidade jurídica do pedido: propriedade da utilização da técnica da interpretação conforme a Constituição
I. Declarar inconstitucional uma incidência normativa (declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto) não é legislar positivamente
18. O pedido formulado na ADPF nº 54 é o de que o Supremo Tribunal Federal, procedendo à interpretação conforme a Constituição do conjunto normativo formado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, declare que ele não se aplica – sob pena de inconstitucionalidade – à seguinte hipótese: antecipação do parto de feto anencefálico por decisão da gestante. Em outros termos: pede-se que o STF declare a inconstitucionalidade de uma determinada incidência dos dispositivos referidos, produzindo como resultado uma declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto.
19. O que cumpre examinar nesta questão de ordem é se o pedido que se acaba de descrever é juridicamente possível. Isto é: se ele pode ser atendido pelo STF, se ele está dentro das possibilidades da técnica da interpretação conforme a Constituição ou se ele transformaria o STF, indevidamente, em legislador positivo. Trata-se de investigar, portanto, se, para atender ao pedido formulado, o STF estaria elaborando norma nova e invadindo a competência do Legislativo. O ponto, na verdade, não envolve maiores complexidades.
20. O controle de constitucionalidade, como consignado anteriormente, é uma modalidade de interpretação e aplicação da Constituição. Independentemente de outras especulações, há consenso de que cabe ao Judiciário pronunciar a invalidade dos enunciados normativos incompatíveis com o texto constitucional, paralisando-lhes a eficácia. De outra parte, na linha do conhecimento convencional, a ele não caberia inovar na ordem jurídica, criando comando até então inexistente. Em outras palavras: o Judiciário estaria autorizado a invalidar um ato do Legislativo, mas não a substituí-lo por um ato de vontade própria.
21. Pois bem. As modernas técnicas de interpretação constitucional – como é o caso da interpretação conforme a Constituição – continuam vinculadas a esse pressuposto, ao qual agregam um elemento adicional inexorável. A interpretação jurídica dificilmente é unívoca, seja porque um mesmo enunciado, ao incidir sobre diferentes circunstâncias de fato, pode produzir normas diversas, seja porque, mesmo em tese, um enunciado pode admitir várias interpretações. Inicie-se por essa segunda possibilidade.
22. Não é incomum que um enunciado abstrato admita várias interpretações, algumas inconstitucionais e outras válidas. Ao invés de declarar a invalidade do enunciado como um todo, a Corte Constitucional pode declarar inconstitucionais apenas uma ou algumas das interpretações possíveis, salvando assim o dispositivo. Trata-se, como já se tornou corrente, de um esforço de conciliação entre a presunção de constitucionalidade das leis e a supremacia da Constituição. Note-se que ao fixar uma interpretação conforme a Constituição, e excluir as demais, a Corte Constitucional procede a um minus em relação ao que está autorizada a fazer, já que poderia declarar a invalidade total do dispositivo. Essa, portanto, é uma primeira aplicação da interpretação conforme a Constituição: fixar, relativamente a um enunciado, uma interpretação possível e que o torne compatível com a Carta, excluindo as demais possibilidades interpretativas.
23. A técnica da interpretação conforme a Constituição pode produzir, no entanto, um segundo tipo de resultado: trata-se da declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto. A hipótese é ainda mais simples que a anterior. Como se sabe, um mesmo dispositivo, ao incidir sobre circunstâncias diferentes, pode produzir normas diversas; e é perfeitamente possível que uma ou alguma delas se mostrem inconstitucionais por conta de suas características particulares. Ora, por meio da interpretação conforme, no lugar de declarar inconstitucional o dispositivo como um todo, bastará reduzir sua aparente abrangência para o fim de excluir aquela hipótese de sua incidência.
24. É bem de ver que nem a técnica nem os resultados da interpretação conforme a Constituição são novidade para a experiência do Supremo Tribunal Federal. Em várias ocasiões, a Corte já se utilizou dessa ferramenta hermenêutica, valendo referir como exemplo o julgamento da ADIn nº 1946/DF, na qual foi apreciada, dentre outros pontos, a constitucionalidade do teto criado pela EC nº 20/98 para os benefícios pagos pela Previdência Social. Naquela oportunidade, o STF entendeu que, embora a imposição do teto fosse válida para a generalidade dos casos, ela seria inconstitucional caso aplicada a um benefício específico: a licença maternidade. Nessa linha, o Plenário conferiu interpretação conforme a Constituição ao dispositivo para declarar que a inovação da EC nº 20/98 era constitucional uma vez que não incidisse sobre a licença maternidade.
25. A aplicação do que se acaba de expor à ADPF nº 54 é intuitiva. Não se pretende aqui que o STF edite qualquer norma nova, mas apenas que declare a inconstitucionalidade de uma determinada incidência dos enunciados referidos no Código Penal. Sobre esse tema, há ainda um aspecto importante a observar.
II. A existência de projeto de lei pretendendo modificar dispositivo impugnado perante o STF não impede a Corte de declarar sua inconstitucionalidade total ou parcial
26. Retome-se por um instante o exemplo da ADIn nº 1946/DF mencionada acima. Imagine-se que, antes de examinado o seu mérito pelo STF, estivesse em tramitação no Congresso Nacional proposta de emenda constitucional cujo objeto fosse esclarecer que o teto imposto aos benefícios previdenciários não se deveria aplicar à licença maternidade. Essa circunstância impediria o STF de considerar a referida incidência da EC nº 20/98 inconstitucional? Naturalmente que não.
27. Na verdade, a existência ou não de projeto de lei pretendendo revogar ou alterar dispositivos impugnados perante o STF não tem o condão de impedir que a Corte pronuncie a sua inconstitucionalidade e nem transforma o STF, por isso, em legislador positivo nessas hipóteses. Se fosse assim, bastaria a apresentação de um projeto de lei, por um único parlamentar, para obstruir a competência constitucional do Supremo Tribunal Federal. O argumento evidentemente não se sustenta.
28. Na realidade, o fato de a constitucionalidade de uma lei – ou mesmo de uma incidência específica dela, como é o caso aqui – estar em discussão perante o STF não impede que as Casas Legislativas debatam alterações nesse mesmo diploma ou mesmo sua revogação. Por outro lado, até que se ultimem, os trabalhos do Legislativo não interferem na competência do STF para declarar a invalidade, total ou parcial, de enunciados vigentes.
29. Aplicando-se tais premissas à ADPF nº 54: o fato de existir projeto de lei pretendendo explicitar a não aplicação das disposições do Código Penal sobre aborto às hipóteses de antecipação do parto de fato anencefálico não interfere com a competência e legitimidade do STF para decidir se essa incidência normativa é constitucional ou não. Ou seja: nem o pedido formulado na ADPF pretende que o Supremo Tribunal Federal crie qualquer norma nova, nem o fato de a questão ter sido ou estar sendo discutida no Congresso Nacional retira da Corte a possibilidade de pronunciar-se a respeito.
Parte II
Atendimento dos requisitos constitucionais e legais de cabimento da ADPF
30. O objeto da ADPF, nos termos do art. 102, § 1º, da Constituição e do art. 1º da Lei nº 9.882/99, é evitar ou reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público. Os dois requisitos principais estão claramente presentes na hipótese:
(i) há preceitos constitucionais fundamentais sendo lesionados – a dignidade, a liberdade e a saúde da gestante; e
(ii) a lesão em tela resulta de ato do Poder Público, que pode ser descrito como o conjunto normativo extraído dos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, ou mais propriamente, na interpretação inadequada que múltiplas decisões têm dado a tais dispositivos.
31. Nos termos do art. 11 da Lei nº 9.882/99, a decisão a ser proferida em ADPF poderá envolver a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. Como referido, o pedido envolve menos do que isso, já que apenas se requer a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução do texto, dos dispositivos do Código Penal já referidos.
32. A Lei nº 9.882/99 adicionou aos dois requisitos acima um terceiro: a inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesividade (art. 4º, § 1º). Outro meio eficaz, como já tem entendido essa Eg. Corte, corresponde a outro processo objetivo no qual se possa decidir a questão em caráter erga omnes e vinculante. Ocorre que, na linha da jurisprudência do STF acerca da legislação editada antes da edição da Carta de 1988, não caberia ação direta de inconstitucionalidade para examinar a validade de incidência de dispositivos do Código Penal. Tampouco seria hipótese de ação declaratória de constitucionalidade ou de qualquer outro processo objetivo.
33. E há ainda uma questão adicional da maior relevância. Além de não haver outro meio objetivo de sanar a lesão, muito dificilmente o tema discutido nesta ADPF chegará ao STF por via de um processo subjetivo, ainda que para produzir efeito apenas entre as partes. Como a prática já demonstrou, a demora inerente aos trâmites processuais normalmente privará a Corte da oportunidade de examinar o assunto antes do desfecho trágico da gestação, com todo o sofrimento que ele trará, inclusive o ônus de submeter-se a gestante à operação de cesariana, de registrar o natimorto, comunicar oficialmente seu óbito e enterrá-lo.
34. Note-se, em desfecho, que a autora requereu, alternativamente e por eventualidade, que na hipótese de se entender pelo descabimento da ADPF, fosse o pedido recebido como de ação direta de inconstitucionalidade (ADIn), no qual se procederia à interpretação conforme a Constituição dos dispositivos do Código Penal impugnados. A jurisprudência tradicional do STF, relativamente ao não cabimento de ADIn em face do direito pré-constitucional, não seria de se aplicar. É que a lógica que move essa linha de entendimento é a de que a lei anterior incompatível com a Constituição terá sido por ela revogada, sendo descabida a ação direta de inconstitucionalidade, que se destina a retirá-la do sistema. Esse raciocínio, naturalmente, não se aplica ao pedido de interpretação conforme, em que a norma permanece em vigor, apenas com a exclusão de uma ou mais incidências.
Conclusão
35. A matéria debatida na ADPF nº 54 é tipicamente da competência de uma corte constitucional, que tem legitimidade democrática para decidi-la. A questão posta perante o Supremo Tribunal Federal sequer envolve qualquer dificuldade contra-majoritária ou pedido de atuação como legislador positivo. Trata-se tão-somente da aplicação direta e imediata do texto constitucional e/ou da interpretação do direito infraconstitucional de modo a realizar os preceitos fundamentais da Constituição. Numa democracia deliberativa, o tribunal constitucional deve ser intérprete e veículo da razão pública.
36. A viabilidade jurídica do pedido formulado é confirmada por inúmeros precedentes do STF, nos quais procedeu à interpretação conforme a Constituição. Esta técnica de interpretação no âmbito do exercício da jurisdição constitucional pode produzir dois resultados, ambos menos abrangentes que a declaração de inconstitucionalidade de dispositivo legal, a saber: (i) a fixação, como legítima, de uma interpretação possível do enunciado normativo, com exclusão das demais; e (ii) a declaração de inconstitucionalidade de determinadas incidências do enunciado, sem redução ou alteração de seu texto. A hipótese dos autos subsume-se perfeitamente nesta segunda possibilidade. Tudo o que se pede é que o STF declare que as normas penais sobre aborto não incidem sobre a hipótese de antecipação de parto de feto anencefálico – quando tal condição seja atestada por laudo médico e o procedimento seja autorizado pela gestante –, sob pena de inconstitucionalidade.
37. Por fim, também os três requisitos legais para o cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental estão inequivocamente presentes: (i) há preceitos fundamentais sendo vulnerados (dignidade, liberdade e saúde da gestante); (ii) a lesão resulta de ato do Poder Público (imposição, sobre a hipótese, de uma incidência inconstitucional de normas do Código Penal); e (ii) não há outro meio eficaz de sanar a lesividade, quer objetivo quer subjetivo.
38. Assim, pelas razões expostas analiticamente, e que foram acima compendiadas, a CNTS requer que a ADPF nº 54 seja conhecida, de modo que a questão de mérito nela discutida possa ser apreciada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal.
LUÍS ROBERTO BARROSO
OAB/RJ